Roda de Preto Velho
Mais um dia de corre-corre esvai-se. Quem produziu, produziu. Quem não o fez, perdeu grande oportunidade, mas aí é outra estória.
Agora a correria é para chegar dentro do horário no terreiro de umbanda a qual sou médium em desenvolvimento e quando a engira é aberta (como é o caso desta noite), ou seja, atendimento fraterno aos irmãos necessitados de uma orientação, tenho a responsabilidade de cambono, dando todo o suporte necessário à entidade em terra.
Hoje a engira é com os nossos amados anciões da Umbanda, os nossos queridos e queridas Pretos-Velhos e Pretas-Velhas.
Realizada toda ritualística tradicional da Umbanda, deu-se início aos atendimentos da noite.
A quantidade de pessoas na assistência (consulentes) era pouca.
Nesta noite eu “cambonava” a entidade de nome Pai Joaquim de Aruanda. Preto-Velho meigo, atencioso, calmo, e de muitas histórias para contar.
No atabaque uma irmã de fé que ama o que faz e toca com amor e fervor o couro do instrumento.
Sempre gostei de prosear com o Pai Joaquim de Aruanda, entre um atendimento e outro.
Naquela noite em especial, naquele espaço de silêncio onde não tendo o que falar devemos ficar quietos, assim o fiz. Já tinha proseado um pouco com o Preto-Velho e minhas dúvidas sanadas temporariamente.
Foi nesse momento de silencio entre nós (eu e o Preto-Velho) que sem querer, dei uma “mergulhada” no toque forte e contínuo do atabaque. Deixei o intenso e ritmado som do tambor me envolver. Por uma fração de segundo, desdobrei. Por ser novidade para mim, me assustei e retornei rápido. Pois tinha de manter a atenção em todo o trabalho e manter-me ligado à corrente, a fim de não quebrá-la.
Mas Pai Joaquim de Aruanda que não é bobo nem nada, já tinha visto e perguntou se eu queria ir até onde eles, os Pretos-Velhos ficavam quando em vida e dar uma “espiadinha” para vê-los. Devido minha grande confiança no médium (cavalo) que emprestava seu corpo físico para que este formoso Preto-Velho se manifestasse e à minha grande confiança nesta entidade, aceitei de bom grado o convite.
Então o Preto-Velho me disse, em tom de voz de comando: “Filho agora feche os olhos, segure em minha mão e mergulhe novamente na sonoridade do atabaque”.
Assim o fiz. Que alegria.
Deixando os detalhes de lado, do sofrimento, do que a história nos conta, a cena que presenciei foi linda.
Remetido à memória espiritual daquele Preto-Velho, cheguei ao terreiro (aqui significa espaço de terra ocupado para acomodar os negros escravos e a senzala) e pude vislumbrar um quadro que a história não nos conta ou pouco nos relata.
Pude localizar entre os negros ali presentes o próprio Pai Joaquim de Aruanda. Mas ali ele não era/estava como velho que se apresenta para o trabalho espiritual. Ele é/era jovem, sorriso largo e branco. Pude vislumbrar todos eles alegres e felizes por poderem à noite realizar seus batuques, cantos, saudações, enfim, suas festividades. Pude ver todos eles dançando, cantando e batendo palma em roda numa fogueira linda que crepitava. Tudo isso ao som de um atabaque. Alguns negros um pouco mais afastados apenas quietos estavam, sendo levados pelo pensamento e pelo toque do atabaque até seus locais de origem, até suas famílias, que tiveram de deixar para trás. Pude notar um deles, só de calça branca, sentado com as costas escoradas, olhar longe, contemplando as estrelas. Pude ver outros, apenas assistindo à festividade. Estavam alegres também. O evento todo contagiava. Mas apenas assistiam.
Mas o que me deixou impressionado, emocionado, alegre e feliz, foi poder ver todos eles cantando com alegria, após um dia de muito trabalho pesado e sofrido.
Mesmo após um dia intenso como era, colocavam suas tristezas de lado e se uniam para festejar. Talvez festejar a vida, festejar seus Orixás ou até mesmo festejar aquele momento em que por instantes esqueciam suas dores.
Tudo isso eu pude vislumbrar em apenas alguns segundos.
De repente me vejo novamente no terreiro. Deixei o desdobramento e recobrei minha consciência.
Novamente o amável Pai Joaquim de Aruanda olha para mim com um sorriso lindo, delicado e pergunta: “Viu fio? Viu nego véio? Viu nosso cantinho?”. Respondi emocionado que sim, que vi tudo. Mas ao mesmo tempo, entre lágrimas, lembrando da história deles de sofrimento, por um segundo entristeci e chorei mais ainda.
O Preto-Velho me diz: “Não carece di fio fica assim não. Tudo isso já passo e nego veio já não senti mais nada disso”.
Recobrei-me e entre sorrisos o agradeci pela maravilhosa viagem.
O resto da noite transcorreu calma e tranquila.
Encerramos a engira.
Agora tinha que correr para não perder o último ônibus da noite até minha casa.
Ainda de branco e cheirando a charuto, adentrava ao veículo. E, perdido pelas lembranças da noite, da experiência vivida, e também cansado, aguardo ansiosamente chegar em casa, tomar um banho e dormir.
Ô Saudade!
Obs.: Embora contado de forma romanceada, trata-se de uma história baseada em fatos reais ocorridas comigo, Valério Ruan. O fato ocorreu há alguns anos atrás quando trabalhávamos numa outra casa.
Texto do filho e irmão Valério Ruan.
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