O conto
Estou caminhando em um jardim de girassóis, o céu azul, pássaros cantando... tudo está em perfeita harmonia.
Não há mais dor, medo ou receio.....onde estarei? Será que é isso o que chamam de paraíso?
De repente ouço um som seco, de batidas leves e curtas, acompanhado de um aroma adocicado que não consigo identificar, mas parece ser tabaco com algum tipo de erva. Ao fundo escuto uma música ritmada e atabaques.
Com pés descalços, sinto toda a energia do lugar, como se eu fizesse parte da terra, do ar, da água.
Uma voz ao longe me chama:
"-Fio, está na hora de vortá"- a voz calma e serena me pede. Nesse momento a luz do sol se intensifica, e como acordando de um sonho, abro meus olhos devagar.
Na minha frente, um homem está sentado em um banquinho, com um cachimbo na boca e estalando os dedos.
Percebo que também estou sentado em um banco e sem que eu tenha controle, lágrimas começam a brotar de meus olhos. Não posso precisar por quanto tempo chorei, mas fui me acalmando à medida que bebia água que alguém havia me servido.
Aos poucos fui me lembrando onde estava, eu havia ido buscar ajuda em um terreiro de Umbanda e diziam que naquele dia quem estava atendendo eram os pretos- velhos.
O homem tornou a falar, e embora tivesse no máximo 40 anos, sua voz soava como um velho ancião. Parecia cansada e baixinha:
“-Fio, ucê gostô do passeio?” ele disse, com um leve sorriso.
-Que lugar maravilhoso era aquele? Onde estive? - perguntei, tentando me agarrar à lembrança que aos poucos se dissipava.
“- Ucê caminhô pra dentro de seu coração, ucê viu sua alma.”
Pensei por um instante em suas palavras, e de como não fizera sentido. A minha vida até aquele momento tinha sido uma seqüência de erros, cheia de amarguras e decepções. Eu achava que se realmente tivesse uma alma, ela estaria perdida em um pântano de sofrimentos.
O homem a minha frente, como se lesse meus pensamentos, pegou em minha mão. Nesse momento algo estranho aconteceu. Levantei os olhos, e quem estava a minha frente não era mais um homem branco, calvo e gordinho. Em seu lugar estava um senhor idoso, magro, negro e de barbas brancas. Seus olhos eram tão doces, que a mudança não me causou espanto, pelo contrário, senti uma paz interior que nunca havia experimentado antes.
Ele disse:
“- Fio, o inferno que ucê vive agora está do lado de fora e não ai dentro. Foi ucê que ao longo do tempo construiu cada tijolinho de sua vida. Com amor, com ódio, com prazer, com a dor, com as esperanças e com as desilusões. E foi ucê também que cercô seu casuá com muros altos, e não permitiu que ninguém se aproximasse. E depois curpô o mundo por suas desgraça.
Não foi fio?” Perguntou-me enquanto baforava uma fumaça que tinha o mesmo aroma que eu tinha sentido antes.
Eu não soube o que responder, ele estava certo. Esse homem me conhecia melhor que eu mesmo.
Ele continuou:
“Esse negô véio nasceu com algemas, vivi a vida toda acorrentado, hora pelos pursos, hora pelos carcanhá. As veiz dormia com as feridas aberta, no chão gelado e com a barriga vazia.
Sabe o que fazia o negô aguentá isso tudo? A certeza que isso acabaria, que esse sofrimento não seria eterno.
Quando desencarnei, fui recebido nos braços de minha mãe Yemanjá, ela curou cada ferida da minha alma e depois apercebi que cada tristeza, cada dor, cada lágrima que derramei se tornô um grão de areia perante a grandeza e a beleza do mundo espirituar.
Ucê tá vendo arguma algema no meu purso agora fio?” Perguntou-me levantando os braços.
"-Não vejo nenhuma." Respondi.
“-E no seu purso fio, tem arguma algema?” Segurou meus braços no alto.
-"Também não". Respondi meio encabulado.
“- Então fio, porque ainda continua preso? Ucê é livre fio, não deixa seu medo e sua auto-piedade acorrentá ucê.
Deixa que esse jardim que ucê carrega, floresça pra fora de sua alma, porque esse é ucê de verdade.”
Refleti suas palavras por um momento e compreendi o que aquele ancião tão caridoso havia me transmitido.
-Pode ir agora fio, tô vendo que o saco de pedras que ucê entrou carregando não existe mais.
Vá em paz e que Jesus Cristo acompanhe ucê.
Levantei-me do banquinho, me sentia mais leve, quase podia flutuar.
Já me dirigia à porta de saída do terreiro quando olhei para trás, num gesto de agradecimento velado, mas para meu espanto quem estava sentado era o homem branco e calvo que eu havia visto antes quando entrei.
Não posso explicar racionalmente tudo que vivi nesse lugar. Como se descreve por palavras o amor incondicional?
Mas sei que estou saindo uma pessoa muito melhor do que quando entrei.
Dedico esse pequeno conto à todos preto-velhos e pretas-velhas. Seres de luz que conseguem enxergar além de nossa mesquinharia e egocentrismo, trazendo à tona nossa essência divina.
Fabio Vieira
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