quarta-feira, 11 de maio de 2016

Ensinos de Pretos Velhos - Por Fátima Damas (*)




Recordo-me que numa noite fomos à Tenda Espírita do Pai Jerônimo, localizada na
 rua Barão de Ubá, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, isso lá pelo início dos anos
 70.

Em lá chegando, de forma anônima, pela primeira vez, eu e meu marido fomos 
levados a uma fila de consultas para uma Preta Velha a fim de que recebêssemos
 passes.

Essa Preta Velha começou a falar o que para mim pareciam ser "abobrinhas", 
deixando-me muito chateada. Tomada por esse sentimento diante da humilde
 servidora espiritual, naquele momento comecei a sentir vibrações. Visto isso,
 a Velha indagou-me se eu trabalhava em algum Centro. Respondi que não.

Resolvi sair dali e dirigi-me ao quintal da Casa, sendo seguida de Pai Jerônimo
 que me pedia para que eu não impedisse a incorporação. Eu transpirava muito,
 relutando e dizendo não, não, não... Eu desejava sair dali, rapidamente.

O dirigente então pegou em minha mão e nesse instante Vovó Maria Conga, 
como que ignorando meu desejo de não "recebê-la" , chegou bastante aborrecida
 em razão de minha atitude inadequada para com aquela Preta Velha das "abobrinhas".

Vovó Maria Conga entrou pelo Terreiro e foi até o Congá. Cumprimentou o 
zelador que lhe perguntou se ela queria trabalhar ali. Vovó respondeu-lhe 
agradecendo seu convite, mas declinou dizendo que já possuía o seu cantinho.
 Indo à frente do Congá, despediu-se e foi embora, deixando-me com fortes dores 
no corpo que me faziam gritar.

Pai Jerônimo, compadecido de meu estado, tentava de todas as maneiras retirar 
a vibração de cima de mim, mas suas tentativas não tiveram êxito. Voltei à casa
 desesperada de dores físicas e contrariada com tudo que acontecera. Lá
 chegando, ela incorporou mais uma vez e novamente muito zangada. Ela falou ao
 Carlos, meu esposo: "não foi aquilo que eu mandei ela fazer!", "ela não deve
 testar entidade alguma!", " da próxima vez, se ela tentar repetir aquela atitude, 
eu a colocarei numa cama de hospital para que aprenda a respeitar qualquer 
entidade e qualquer Tenda que ela vá!". Essa foi a primeira e a última vez 
que eu desobedeci a suas ordens. Após isso passei a ter mais respeito e a sentir 
mais carinho por ela.
           Em verdade a ida à Tenda do Pai Jerônimo era o cumprimento de uma ordem 

que eu
 recebera de Vovó Maria Conga, de "correr gira" para encontrar um local para
 que ela pudesse trabalhar. Entretanto, eu desconsiderei as recomendações que
 ela me dera, as quais representavam o método a ser empregado nesse processo
 de busca: ouvir, ver e não criticar nada!

Tive a segunda lição, que tento expor em minha singela homenagem aos 
Pretos Velhos, numa madrugada chuvosa e bem fria - duas horas da manhã!

Forçados pela ordem de Vovó Maria Conga, como disse acima, de visitar
 possíveis Terreiros onde ela pudesse trabalhar, estávamos eu e marido, 
acompanhados de um casal amigo Athayde e Cléa, novamente "em campo".

Athayde lembrou da existência de um Terreiro antigo. Este ficava numa rua 
totalmente deserta e íngreme, de acesso muito difícil, obrigando-nos a 
segurar nos montes de capim para não cairmos. Até o som dos atabaques 
que nos facilitaria identificar sua localização não era ouvido por nós. 
Finalmente olhei e vi um Terreiro grande, de edificação antiga e mal iluminada.

Lá dentro encontramos duas moças sentadas num banco comprido e ao lado do
 Congá estava um Preto Velho dando uma consulta à outra moça igualmente.

Olhando tudo a nossa volta, percebi que o local não contava nem mesmo
 com a assistência valiosa de um cambono.

O médium - um negro idoso - vestia o uniforme da Umbanda, uma vestimenta
 simples e bem surrada, junto com seu chapéu de palha bem castigado 
pelo tempo. Tudo espelhava humildade: o médium, o uniforme, o chapéu, a rua 
e a Tenda.

Fui então pedir a bênção desse servidor. Quando curvei-me, senti que a chuva, 
escapando pelas goteiras da Casa, molhava minhas costas. Nesse momento, 
que não me sai da mente até hoje, notei que o Velho estava todo molhado. 
A cena doeu-me na alma e disse ao Preto Velho: "Vovô, o senhor me 
permite colocar o seu banquinho em outro local que não tenha goteiras?" 
Ele respondeu: "Filha, olhe para cima e você verá que não há nenhum local 
onde a chuva não possa penetrar. Tanto faz ficar aqui onde estou ou ir para
 outro lugar onde você tenha vontade de me colocar - será a mesma coisa!".

Seguindo a sugestão do Preto Velho olhei para cima e vi que o telhado era uma
 grande peneira!

Calei-me e minhas lágrimas, oriundas do exemplo de abnegação e modéstia
 do Velho, se misturaram à água da chuva que caía.

Ao fitar-me, falou o Velho: "Não fique assim não minha filha. O teu coração
 é muito grande, mas nós só podemos fazer aquilo que está ao nosso 
alcance. O que está passando pela sua cabeça, eu sei que você não pode 
realizar. A sua visita à essa hora da noite, com chuva e frio, já me mostrou o
 amor que você tem pela Umbanda e o que eu posso fazer por você, é pedir 
ao nosso Pai Oxalá que te abençoe, dando a você saúde e força para que 
você continue na sua busca a fim de cumprir a missão que a minha mana 
colocou em suas mãos".

Fiquei surpresa, pois eu não fizera nenhum comentário sobre o que a Maria 
Conga me mandara fazer, sobre a necessidade de "correr gira".

Eu agradeci a entidade por tudo que nos desejou e saímos para a continuação 
de nossa "busca".

No carro eu não conseguia conter o choro de gratidão a Deus por ter-me
 apresentado aquele Preto Velho, anônimo, de "uniforme surrado", 
chapéu de palha gasto, chamado Pai Joaquim das Almas. O Velho 
me deu uma lição de sabedoria, amor, fé, caridade, e muita, muita humildade.

Com a cena na mente, de tudo que se passou comigo, cheguei a seguinte
 conclusão: Para se praticar a caridade, só precisamos de amor, 
boa vontade e uma verdadeira Entidade. Não precisamos de Terreiros 
cheios, grandes, bem edificados, nem de muitos aparatos.

Ali naquele Terreiro, sem um número significativo de médiuns e de
 consulentes e sem estrutura material, tive a lição fundamental para a 
prática na vida espiritual - a humildade -, tive a base que me nortearia
 no meu relacionamento com as Entidades e com os irmãos de crença e o
 ímpeto de estudar e pesquisar a fim de saber o que eu estava fazendo dentro
 da Umbanda.

Do contato com o Preto Velho, afastado dos olhos das platéias 
numerosas e da pompa enganadora, saí impregnada do sentimento 
revelado nas máximas do inesquecível Caboclo das Sete Encruzilhadas:
  “Umbanda é a manifestação do Espírito para a prática da Caridade
", "Não cobrar, não matar, vestir o branco, evangelizar e utilizar as 
forças da natureza".
         (*) Fátima Damas é Diretora Executiva da CEUB - Congregação Espírita
          Umbandista do Brasil, que tem a sua sede no Rio de Janeiro.

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