Umbanda a voz dos excluídos
Já se vão longos e confusos noventa e oito anos da primeira reunião de Umbanda feita no Brasil. No próximo dia dezesseis de novembro, os umbandistas vão (ou não...) comemorar o nonagésimo oitavo aniversário da fundação da Umbanda. Ou, quase isso...
Não são todos os terreiros, mesmo que direta ou indiretamente herdaram a tradição gerada em Niterói, que aceitam a data como marco fundador e outros nem ao menos são informados pelos dirigentes que esse dia quer dizer algo para o cotidiano dos terreiros. E por que isso acontece? Pelo fato de que aos longos desses anos muita coisa mudou, muita substituiu e uma grande parte se deturpou. É de nosso conhecimento que o Brasil passou por dois períodos ditatoriais, um, do Estado Novo e outro iniciado com o golpe militar de abril de 1964. A Umbanda sofreu forte perseguição no período Getulista, tendo suas tendas invadidas pela polícia, médiuns vítimas de espancamento, objetos quebrados e toda sorte de abuso de uma autoridade ficticiamente gerada pela sociedade para a proteção da mesma. Não obstante, os terreiros de Umbanda seguiram firmes no ideal legado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas (nessa época, Zélio de Moraes ainda vivia) tanto que, apesar das adversidades, em 1945, com o fim da ditadura de Vargas, a Umbanda cresceu rapidamente a nível nacional, espalhando suas tendas pelo país. Com esse antecedente, parece começar aqui a uma história maravilhosa de uma crença sobrevivente à arbitrariedade dos homens e do descrédito das elites, contudo e infelizmente, de mãos dadas a essa célere expansão, o desvirtuamento da Umbanda teve início.
Gestado em dias passados, o amálgama de rituais e conceitos que tentavam se inserir na Umbanda, foram assimilados em tempo recorde quando o culto irrompeu das fronteiras do Estado do Rio, seu berço, para ganhar o resto do país. Em todos os Estados, o novo culto foi adequado aos moldes de suas crenças, sem nem ao menos respeitar as regras principais proferidas pelo fundador espiritual em 1908. A Umbanda assentou-se em terreiros de magia negra, barracões de Batuque e até mesmo em roças ou alguns Ilê Asè menos conservadores. A prática, completamente alienada dos reais objetivos declarados na data da fundação, foi estendendo-se, ampliando sua tolerância à vontade dos novos dirigentes que imiscuíam ao novo culto, suas leituras e interpretações do astral, dos espíritos que ali trabalhavam criando então, não a perpetuação do culto de Niterói, mas sim, Umbandas. Sob a bandeira mascaradamente evolucionista e progressista, que escamoteava interesses perversos, várias vertentes da Umbanda surgiram e, bem aceitas pelos médiuns, cresceram e desenvolveram-se, curiosa e tristemente praticando os mesmo atos que a egrégora fundadora idealizou combater.
Dogmas foram proferidos, rituais inseridos e tomados como essências, elementos oriundos de outras crenças, tornados sagrados. Enquanto que os guias fundadores, os cânones principais e a essência do culto, dormiam esquecidos em algum canto, pois não lhes era dado ouvidos. Num lado, eram chamados de eguns, espíritos que não mereciam ser ouvidos e não detinham a autoridade para dizer nada. Noutro, meros mensageiros de seres divinais que deveriam ser reverenciados a qualquer custo, sobre qualquer lei com pena de castigos inigualáveis.
Os guias de Umbanda, de certa forma, novamente tiveram sua boca calada e, relegados a simples coadjuvantes num palco de estrelas, seus ensinamentos foram perdidos, os que restaram, cruelmente (ou inocentemente) deturpados. Ainda ecoam as palavras de Sete Encruzilhadas: “Todas as entidades serão ouvidas, e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos àqueles que souberem menos e a nenhum viraremos as costas e nem diremos não, pois esta é a vontade do Pai".
A Umbanda que nasceu em 1908 para dar voz aos excluídos, aos espíritos que desejavam falar, mas não eram ouvidos, caiu, com a “evolução” à que foi exposta, ao seu estado inicial: os guias, de certa forma, continuam sendo excluídos, e não mais lhes é rendida qualquer atenção. A Umbanda, a “manifestação do espírito para a caridade”, a voz dos excluídos, hoje, é um não-se-sabe-o-quê de ritos estranhos e nada condizentes com a época da fundação. Contudo, são os mentores e guias da Umbanda, entidades essencialmente combativas e incansáveis, e há os poucos que lhe dão voz, os médiuns que militam em função de uma Umbanda sem mistificações, um culto puro tal como foi idealizado, como foi fundado. Um culto cujos paradigmas estão ainda hoje em estado de aperfeiçoamento, mas que não precisa dessa evolução em paralelo, pregada pelos oportunistas. Faz-se necessário dar voz aos excluídos, livrar-se do preconceito e manter a mente no futuro, mas arraigada no passado da Umbanda, pois lá está o norteador do culto. Sem entender aquele período, não existe Umbanda. Sem obedecer aos ensinamentos e instrução dos guias, não há dirigentes, mas sim, cegos guiando cegos num terreno repleto de precipícios. Fechando os ouvidos aos cânones umbandistas de fundação e sentido-se seguro em ritos oriundos de outras crenças e forçosamente incorporados à Umbanda, não se fazem médiuns umbandistas, mas infelizmente, mistificadores mistificados.
Enfim, a resistência é pequena, mas existe. Os médiuns conscientes são poucos, mas dedicados, por isso, a Umbanda ainda tem fôlego e os excluídos, que em 1908, através de um Caboclo reclamaram o direito de falar, continuam a ter voz, em poucos lugares, baixa e por vezes não compreendida, não obstante, irrelutantemente verdadeira.
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